Talvez o capítulo mais trágico da história da humanidade tenha sido o nazismo e a Guerra com milhões de vítimas que engendrou. O papel da igreja cristã, em suas diferentes vertentes, do colaboracionismo à resistência, sempre foi muito criticado, e deve ser sempre relembrado e discutido para que os erros jamais se repitam. No seu livro "História do Cristianismo" (Ed. Imago, Rio de Janeiro: 2001), Paul Johnson faz uma análise detalhada desse período, e destaco abaixo alguns trechos que permitem ter uma boa idéia de alguns aspectos deste grande drama, que ocorreu há pouco mais de 60 anos:
Não obstante, os católicos não nutriam qualquer fidelidade para com Weimar; ela não era "nacionalista" o bastante. E com relação a Hitler, que era, eram ambivalentes. É verdade que alguns bispos a princípio foram hostis aos nazistas. Em 1930, por exemplo, o cardeal Betram, de Breslau, chamou o nazismo de um "erro grave", e descreveu seu nacionalismo fanático como "um delírio religioso que tem de ser combatido com o maior vigor possível". Naquele mesmo ano, uma declaração oficial do dr. Mayer, vigário-geral da arquidiocese de Mainz, confirmou que os católicos estavam proibidos de votar em nazistas, devido à política racista do partido. Os bispos bávaros também atacaram o nazismo, e uma declaração dos bispos de Colônia chamou a atenção para o paralelo com a Action Française, oficialmente condenada pelo Santo Ofício três anos antes. Foi uma comparação simplória, porém, pois a longa hesitação de Roma a respeito do movimento francês era notória – era evidente que não se encontrava na mesma categoria do comunismo, nem mesmo do socialismo. (De fato, Pio XII revogou a proscrição da Action Française, sem qualquer retratação de sua parte, assim que tornou-se Papa, em 1939). De qualquer modo, alguns dos bispos recusaram-se terminantemente a assumir uma posição contra o nazismo – e sobretudo contra Hitler, cuja popularidade vinha aumetnando cada vez mais. O cardeal Faulhaber estabeleceu uma distinção clara entre "o Führer", a quem considerava bem-intencionado e basicamente um bom cristão, e alguns de seus "asseclas malignos". (Era uma ilusão comum, inteiramente fundamentada na racionalização de desejos, entre os clérigos germânicos de todas as seitas). Alguns bispos foram mais longe: Shreiber, de Berlim, dissociou-se da condenação de Mainz; além disso, em Fulda, agosto de 1931, quando se tentou chegar a uma condenação unânime do nazismo por todos os bispos católicos, a resolução foi derrotada por votação. O fato é que a maioria dos bispos era monarquista. Detestavam o liberalismo e a democracia muito mais do que a Hitler. Assim, em vez disso aprovou-se uma declaração ambígua que, pior, para contrabalançar, foi acompanhada (nessa como em outras ocasiões) de manifestações fervorosas de patriotismo alemão e por protestos extremados quanto aos padecimentos e ao tratamento injusto sofridos pela Alemanha – de modo que o efeito líquido foi ajudar os nazistas e inclinar os eleitores católicos a apoiá-los. Na tentativa de se valer do triunfo do patriotismo de Hitler, os bispos católicos tornaram-se joguetes em suas mãos, incentivando os fiéis a lhe dar seus votos.
pp. 590-591:
"A despeito das tentativas tanto do clero protestante quanto do católico de se iludir, Hitler não era um cristão, e a maioria dos membros de seu movimento era assumidamente anticristã. É claro que, por vezes, Hitler era enganoso. Ele jamais deixou a Igreja oficialmente; às vezes referia-se à "providência" em seus discursos, e freqüentou a Igreja em seus primeiros anos no poder. Na década de 20, comentou com Ludendorf que precisava dissimular seu ódio pelo catolicismo, por necessitar dos votos católicos da Bavária tanto quanto dos protestantes prussianos – "o resto pode vir depois". O programa de seu partido era deliberadamente ambíguo: "exigimos liberdade para todas as denominações religiosas no Estado, desde que não constituam um perigo para este e não militem contra os costumes e a moralidade da raça germânica". Essas condições cautelosas deveriam ter sido mais que suficientes para alertar qualquer cristão inteligente. Entretanto, manteve-se a crença, sobretudo entre os protestantes, de que Hitler era um homem muito pio. Aceitavam suas garantias tranqüilas quando ele se isentava, ou se o movimento fosse conveniente, dos escritos de seus homens – desse modo, ele ressaltou que o tratado anticristão de Rosenberg, "O Mito do Século XX", incluído no Índex católico, era uma visão pessoal, não uma política oficial do partido". Na verdade, ele odiava o cristianismo, e demonstrava um desprezo justificado por seus praticantes alemães. Logo após ascender ao poder, disse a Hermann Rauschnig que pretendia eliminar o cristianismo "pela raiz e pelos galhos" na Alemanha. A seu ver, o método deveria consistir em "deixá-lo apodrecer como um membro que gangrena". Além disso: "você acredita de fato que as massas voltarão algum dia a ser cristãs? Besteira. Nunca mais. Essa história está encerrada (...) mas podemos acelerar o processo. Faremos os clérigos cavarem seus próprios túmulos. Vão trair seu Deus por nós. Vão trair qualquer coisa para salvar seus empreguinhos e salários miseráveis".
Essa dura avaliação chega perto da verdade. Nem a Igreja Evangélica nem a Católica jamais condenou o regime nazista. No entanto, os nazistas em geral nem sequer deram-se ao trabalho (como fizera Hitler, a princípio) de fingir ser cristãos. Rejeitavam de modo ferrenho as acusações de ser ateus. Himmler declarou que o ateísmo não seria tolerado nas fileiras da SS. Em contrapartida, diziam acreditar na "religião do sangue". Situavam-se na tradição milenarista, e tinham algo em comum com as pseudo-religiões experimentais da década de 1790 na França revolucionária, mas com um conteúdo racista a mais. Como os cultos da revolução, tentaram desenvolver uma liturgia. A editora nazista publicou um panfleto escrevendo "formas de celebração de caráter litúrgico que serão válidas por séculos". O serviço principal consistia em "um discurso solene de quinze a vinte minutos, em linguagem poética", uma "confissão de fé recitada pela congregação" e, em seguida, o "hino do dever"; a cerimônia seria encerrada com uma saudação ao Führer e um verso de cada um dos hinos nacionais. O credo nazista, utilizado, por exemplo, em festivais da colheita, dizia:
"Creio na terra dos alemães, em uma vida de serviço a esta terra; creio na revelação do poder criativo divino e no sangue puro derramado na guerra e na paz pelos filhos da comunidade nacional alemã, enterrados no solo por eles santificados, erguidos e vivos em todos por quem ele é imolado. Creio em uma vida eterna na terra deste sangue que foi vertido e voltou a se erguer em todos os que se reconheceram o significado do sacrifício e estão prontos a se submeter a ele. (...) Assim, creio em um Deus eterno, em uma Alemanha eterna e em uma vida eterna."
p. 594:
"A Gestapo cuidava da repressão onde fosse necessária. Raras vezes teve de ser severa. Com exceção de alguns indivíduos, dificilmente os clérigos precisavam ficar muito tempo na prisão. Dos dezessete mil pastores evangélicos, nunca havia mais de cinquenta cumprindo penas longas ao mesmo tempo. Entre os católicos, um bispo foi expulso de sua diocese e outro recebeu uma breve pena por delitos cambiais. Não houve resistência além disso, apesar de, em meados de 1939, todas as escolas religiosas terem sido abolidas. Só as seitas livres ativeram-se o suficiente a seus princípios para merecer a perseguição aberta. A mais corajosa foi a Testemunhas de Jeová, que proclamou sua total oposição doutrinária desde o princípio, e sofreu de acordo. Recusou-se a cooperar em qualquer sentido com o Estado nazista, que denunciava como rematadamente maligno."
pp. 600-601
"A resistência cristã a Hitler e ao nazismo foi fraca e ineficaz, mas existiu - foi mais persistente e criteriosa que a de qualquer outro elemento da sociedade germânica. Alguns cristãos ocidentais reconheceram sua existência e procuraram fortalecê-la; havia uma tênue linha de comunicação cristã através do abismo da guerra. Na década de 30, George Bell, bispo anglicano de Chichester, estabelecera contato com o grupo antinazista da Igreja Evangélica, em particular com o pastor Dietrich Bonhoeffer [foto ao lado]. Com a irrupção da guerra, empenhou-se em combater o insensato patriotismo cristão que, em 1914, reforçara ódios dos dois lados. Com efeito, ele foi o único prelado cristão, nas duas guerras, que tentou pensar em termos do que um sacerdote deveria fazer naquelas circunstâncias. Em novembro de 1939, publicou um artigo, "A Função da Igreja em Tempos de Guerra", na Fortnightly Review, em que argumentou ser vital que a Igreja continuasse sendo a Igreja, não "a ajudante espiritual do Estado". Ela devia definir princípios fundamentais de condutas, "não hesitar (...) em condenar a promoção de vinganças, ou o bombardeio de populações civis, pelas forças militares de seu próprio país. Deve colocar-se contra a propaganda de mentiras e ódio, estar pronta a estimular a retomada de relações cordiais com a nação inimiga. Deve opor-se a qualquer guerra de extermínio ou escravidão, bem como a toda medida que vise diretamente a destruir o moral de um povo".
Bell empenhou-se ao máximo por seguir esses princípios, todos os quais foram desrespeitados pelos Aliados - com conhecimento e incentivo das Igrejas. Em junho de 1942, ele conseguiu alcançar a Suécia, de onde entrou em contato com a resistência alemã e com Bonhoeffer. Este dissera a seus amigos, em 1940, depois do êxito de Hitler na França: "se nos declaramos cristãos, não há lugar para interesses pessoais. Hitler é o anticristo. Portanto, temos de prosseguir com nosso trabalho e eliminá-lo, quer ele seja ou não bem-sucedido". A última mensagem de Bonhoeffer, contrabandeada da prisão pouco antes de sua execução, em abril de 1945, foi para Bell: "(...) com ele eu creio no princípio de nossa Fraternidade Cristã Universal, que se ergue acima de todos os interesses nacionais, e que nossa vitória está assegurada."
http://ocontornodasombra.blogspot.com/2009/01/ser-cristo-nos-tempos-de-hitler.html