RIO DE JANEIRO - CAIS DO VALONGO: PASSADO RESGATADO

 



Cais do Valongo: Porto Maravilha resgata passado do Rio

Descobertos restos de cais onde escravos desembarcavam.

 

Por Nelza Oliveira para Infosurhoy.com—19/05/2011


RIO DE JANEIRO – Enterrado há mais de um século, parte do passado do Rio de Janeiro – e da história do Brasil – começa a emergir.
Graças às escavações para as obras de revitalização de áreas da cidade pelo projeto Porto Maravilha, foram descobertas estruturas soterradas do chamado Cais do Valongo.
Os vestígios do passado brasileiro foram encontrados ao longo da Avenida Barão de Tefé, onde ficava o cais. Foi por esse cais que milhares de homens, mulheres e crianças capturados na África para trabalhar como escravos chegaram ao Brasil de 1818 a 1830. O complexo tinha mercados, depósitos, uma área para quarentena, cemitério e diversos outros estabelecimentos ligados ao comércio de escravos.
A partir de 1843, começou a ser construído o Cais da Imperatriz sobre o Cais do Valongo. As obras tinham por objetivo recepcionar a futura imperatriz Teresa Cristina, que veio da Itália para se casar com Dom Pedro II, o então imperador do país.
Diversas reformas urbanas nos séculos seguintes também seguiram apagando os vestígios do envolvimento do Brasil com a escravidão, agora sendo redescobertos. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, pediu que o projeto Porto Maravilha fosse refeito para preservar os achados arqueológicos do cais, que devem virar um memorial.
                        
Esses desenhos são prévia da modernização em execução no porto do Rio - o projeto "Porto Maravilha"
"Pretendo fazer uma praça como em Roma", disse Paes. "Estas são as nossas ruínas romanas. Além disso, construiremos um museu para colocar as peças e objetos encontrados nos dois antigos ancoradouros."
A equipe de 12 profissionais do Departamento de Antropologia do Museu Nacional que acompanha as obras sabia da existência do cais, mas tinha dúvidas se as estruturas haviam sido preservadas ou destruídas, diz a arqueóloga Tânia Andrade Lima, professora associada do dito departamento.
  Arqueóloga Tânia Andrade Lima
"Nosso principal interesse era encontrar o Valongo", contou Tânia. "Parece-nos bastante importante denunciar todas as situações de apagamento, de amnésia social, de esquecimento, que a dinâmica social imprime a determinados segmentos, principalmente o do [então] negro escravizado."
Entre os materiais encontrados e que estão sendo catalogados, estão partes de calçados, jogos de búzios para prática religiosa dos escravos e botões feitos com ossos pelos cativos. O que mais impressionou a arqueóloga foram as joias confeccionadas pelas escravas com piaçavas (espécie de fibra de palmeira). Os adornos eram usados nas cordas que as mantinham presas em um esforço para preservar sua feminilidade.
"[As joias] são de uma delicadeza que não parecem feitas de piaçavas", afirmou Tânia. "É comovente saber que, mesmo naquela situação degradante, elas buscavam formas de se enfeitar."

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Em 1996, durante obras de reforma em sua casa, na Rua Pedro Ernesto, Ana Maria Merced, 54 anos, se deparou com ossadas aparecendo entre o entulho retirado das escavações. Ana Maria reconheceu que eram ossadas humanas. Assustada, pensou que se tratava dos vestígios de uma chacina.
"Até que conversei com um senhor da associação de moradores da região que lembrou da história do cemitério", contou. "Procurei o Centro Cultural José Bonifácio, que fica aqui perto e é ligado à cultura afro-brasileira, e eles avisaram a prefeitura."
As ossadas sob a casa de Ana Maria eram restos mortais de escravos enterrados no Cemitério dos Pretos Novos.
No livro "À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro", o historiador Júlio César Medeiros da Silva Pereira conta que os escravos eram humilhados até depois da morte. Isso porque os enterros eram feitos em cova rasa, a um palmo de profundidade, com os corpos nus, envoltos e amarrados em esteiras, sem nenhum direito aos preceitos das culturas tradicionais africanas ou qualquer tipo de sacramento, explicou Pereira.
Os mortos eram jogados uns sobre os outros e queimados uma vez por semana, continuou Pereira. O Cemitério dos Pretos Novos funcionou de 1772 a 1830, dizem historiadores.
Para obter reconhecimento como nação independente de Portugal, em 1830 o Brasil firmou com a Inglaterra o compromisso de abolir o tráfico negreiro.
No registro de óbitos da Igreja de Santa Rita, entidade católica responsável pela administração do cemitério, constam 6.119 sepultamentos apenas nos últimos seis anos de existência do local, afirmou Pereira em seu livro.
A partir dos 5.563 fragmentos encontrados na casa de Ana Maria, a análise antropológica e biológica dos ossos permitiu identificar 28 corpos, com idades entre 3 e 25 anos e de ambos os sexos.

Rio terá passeio arqueológico
" Salve o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas do cais"
Mas, em 1996, Ana Maria não obteve da então administração municipal qualquer incentivo para recuperar e preservar a história. Assim, ela resolveu preservar a história por conta própria.
Em 2005, sua família comprou dois imóveis do lado de sua casa e montou o Instituto dos Pretos Novos (IPN), atualmente um centro de referência sobre a cultura afro-brasileira. No ano passado, o IPN recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
O IPHAN também está patrocinando uma pesquisa para que o IPN possa delimitar a área original do cemitério. Todo o material encontrado na casa de Ana Maria está guardado no Instituto de Arqueologia Brasileiro (IAB).
Mas o IPN não será esquecido dessa vez, garantiu o arquiteto Washington Fajardo, subsecretário municipal de Patrimônio Cultural, responsável pelo novo projeto na área do Cais do Valongo e do Cais da Imperatriz.
"No plano está previsto uma atenção ao cemitério, por se tratar de outra ligação com a escravidão na área. Queremos fazer a integração dos dois locais como roteiro arqueológico", afirmou o subsecretário.

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